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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

SOCIOLOGIA

Marta Caetetu - às 21h 53


A Sociologia de Guerreiro Ramos



Painel sobre a "Contribuição de Guerreiro Ramos para a Sociologia Brasileira", in Revista de Administração Pública (Rio de Janeiro)) 17, 2 abril-junho, 30-34, 1983.
Simon Schwartzman

Gostaria de fazer alguns comentários sobre como era a sociologia no Brasil que Guerreiro Ramos criticava, e qual era o tipo de sociologia que ele pretendia desenvolver. Isto nos permitirá pensar um pouco em como avaliar, com os olhos de hoje, sua contribuição.

Temos que lembrar que, na época em que Guerreiro Ramos viveu e trabalhou no Brasil, a sociologia praticamente só existia, como atividade acadêmica institucionalizada, na Universidade de São Paulo. Somente na USP era possível fazer do trabalho sociológico uma carreira, com reconhecimento social e perspectivas de crescimento. Fora isto, e com algumas poucas exceções, o que havia no país eram "pensadores" e escritores isolados, alguns de grande talento, que buscavam estabelecer uma ponte entre a atividade intelectual e a atividade política. Guerreiro Ramos, pelo menos em sua intenção, representava bem esta extirpe de escritores, combinando grande erudição e brilho intelectual com uma preocupação constante em participar e influir na vida política.





Um exemplo de seu nível pode ser visto em seu artigo publicado em 1946 na Revista do Serviço Público a respeito da sociologia de Max Weber. Como sabemos, a obra principal de Weber, Economia e Sociedade, foi traduzida ao espanhol por José Medina Echevarria, espanhol refugiado no México e membro do grupo que formou o Colégio de México, muito antes que houvessem traduções equivalentes para o inglês ou francês. Em 1946 Guerreiro Ramos, trabalhando no DASP, já havia lido e escrito sobre esta obra clássica, quando na França e nos Estados Unidos ela ainda levaria muitos anos para penetrar mais profundamente .

Este trabalho intelectual de Guerreiro Ramos era feito de forma quase isolada, sem um contexto institucionalizado que lhe desse apoio e sustentação. Como foi a carreira profissional de Guerreiro Ramos? Pelo que sei, ele veio da Bahia para o Rio de Janeiro na década de 30, tentou sem muito sucesso um lugar na Universidade no Brasil, teve uma aproximação com o integralismo que não durou muito, foi funcionário do DASP e, depois da guerra, incorporou-se à Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, Quando de sua criação, a EBAP pretendia ser a grande escola de formação da quadros de alto nível para a administração pública brasileira, mas nunca chegou a se constituir, de fato, em um centro e pesquisas e estudos. No inicio dos anos 50 Guerreiro Ramos participou do Instituto Brasileiro de Estudos Sociais e Políticos, o IBESP, também conhecido como o "Grupo de Itatiaia", que editou os Cadernos de Nosso Tempo e deu origem ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB. A proposta do ISEB, como sabemos, era a de se constituir em uma liderança intelectual e ideológica para o país, da qual decorresse uma posição de liderança política efetiva. Conseqüente com esta postura, Guerreiro Ramos se candidata a deputado federal no início da década de 60, termina sendo cassado em 1964, e parte, finalmente para os Estados Unidos, onde é acolhido na Universidade do Sul da California, que tem uma longa tradição de intercâmbio e cooperação com a EBAP.


É preciso ter esta carreira em mente para compreendermos que o trabalho intelectual de Guerreiro Ramos visava sempre um objetivo a curto prazo, era a tentativa de juntar um pensamento que fosse ao mesmo tempo acadêmico, erudito, e uma arma de ação política e de poder. Só assim podemos entender, por exemplo, a grande utilização de autores existencialistas e fenomenológicos, presentes não só na obra de Guerreiro Ramos mas na de vários de seus contemporâneos. O objetivo era constituir uma ciência social que fosse ao mesmo tempo engajada, participante e não marxista, e que servisse de base a uma ideologia nacional, nacionalista. Era importante impedir que esta obra fosse identificada com a ortodoxia marxista, como também era importante diferenciá-la de uma ciência social que fosse meramente universitária, a-critica, sem uma vocação de participação política mais direta. A França do após guerra proporcionava, evidentemente, os ingredientes intelectuais para esta tentativa, graças à preeminência de Sartre, por um lado, e à sociologia de base fenomenológica de Georges Gurvitch por outro. É ai que a Redução Sociológica encontra suas raízes, em seu esforço de chegar à fenomenologia alemã via seus divulgadores franceses, e como fundamentação para um tipo novo de ciência social autêntica, nacionalista e participante.

A Redução Sociológica foi possivelmente a obra mais influente de Guerreiro Ramos, e ela deve ser entendida, principalmente, como uma proposta política, uma proposta de política científica e intelectual. Se olharmos este livro do ponto de vista estrito da metodologia que propõe e dos resultados práticos a que esta metodologia acena, o resultado é decepcionante. O que fica de interessante é uma proposta de que a sociologia deve ser constituída a partir da realidade nacional, pelo desenvolvimento de uma metodologia também própria, e que a partir desta realidade toda a tradição cultural da sociologia européia e norte-americana poderia ser recuperada.

É na crítica de Guerreiro Ramos á sociologia do negro, e suas propostas em relação a ela, que ele leva mais à frente sua visão. A primeira coisa que faz é uma revisão da tradição intelectual brasileira sobre o assunto e, neste processo, contribui decisivamente para restabelecer a ponte de comunicação intelectual entre o passado e o presente no pensamento social brasileiro. A derrota do fascismo havia trazido o opróbrio aos autores que, antes da guerra, haviam de alguma forma se aproximado às idéias racistas, corporativas e totalitárias tão em voga naqueles anos, e o Brasil da década de 50 parecia ter uma história que não remontava a antes de 1945. Guerreiro Ramos olha para trás, e trata de encontrar algum valor mesmo em autores cujo racismo era inegável. Para ele, haviam duas tradições brasileiras no tratamento da questão do negro, uma totalmente perdida e negativa, outra recuperável. A melhor tradição era a que incluía a Alberto Torres, Euclides da Cunha e Oliveira Viana. Era verdade que Euclides da Cunha acreditava da determinação geográfica e ecológica da cultura, e Oliveira Viana, autor de Raça e Assimilação, se preocupava com o branqueamento da população brasileira. Eles possuíam, apesar disto, uma idéia de processo, de história, de transformação, e por isto tinham uma contribuição importante a ser recuperada. A pior tradição era representada pelos que tinham uma idéia estática e pessimista do brasileiro, visto como uma raça impura e condenada pela contaminação do sangue negro. Arthur Ramos e Gilberto Freire são indicados como os principais representantes desta concepção imobilista, que no máximo olhava para o negro como objeto folclórico, a ser estudado como os entomólogos estudam os insetos. Costa Pinto, contemporâneo de Guerreiro Ramos, é apontado como representante desta tradição mais negativa, e contra ele se volta boa parte dos ataques da "Cartilha Brasileira dê Aprendiz de Sociólogo", texto incorporado mais tarde em Introdução Critica à Sociologia Brasileira. O que Guerreiro Ramos propõe em troca é uma sociologia no negro feita pelo próprio negro, a partir da assunção de sua condição racial, a partir de uma tomada de consciência de sua negritude. Esta proposta dê Guerreiro Ramos antecede em décadas a difusão de uma atitude militante dos intelectuais negros do país, ainda que seja contemporânea, e sem dúvida inspirada, na defesa da negritude quê então surgia na África francofona, e que tinha sua contrapartida no Brasil no Teatro Experimental do Negro, com o qual Guerreiro Ramos mantinha contatos próximos.

Visto tudo isto, não há como deixar de registrar um sentimento de grande frustração. A obra dê Guerreiro Ramos é principalmente critica, mas de poucos resultados. Ele não prezava o produto intelectual enquanto tal, e seu projeto político, por razões históricas que conhecemos, não foi muito adiante. Mais ainda, creio que a carreira de Guerreiro Ramos mostra a própria frustração da idéia de era possível, a partir de um projeto intelectual, realizar um projeto político. Ao final, Guerreiro Ramos acaba ficando sem uma obra sociológica mais consistente, e sem uma carreira política mais significativa.

O exílio seria a possibilidade de tentar uma carreira acadêmica, pelo confinamento a uma universidade estrangeira onde existem todas as condições para estudar, escrever e trocar idéias, mas poucas para agir. É possível que sua obra de maturidade, A Nova Ciência das Organizações, seja sua contribuição sociológica mais substantiva. Sem ter condições de avaliar este trabalho em seu mérito neste contexto, não há dúvida, de qualquer forma, que seu impacto foi bem menor do que o das obras criticas anteriores de Guerreiro Ramos. Por isto, e independentemente deste último livro, parece bastante provável que Guerreiro Ramos fique na história das ciências sociais brasileiras principalmente como debatedor, crítico, motivador e criador de um sentido de compromisso e responsabilidade social sem o qual não é possível desenvolver nenhuma ciência social que tenha algum valor. "Sou um homem", dizia ele uma vez, anos atrás, a um grupo de ávidos estudantes dê sociologia belorizontinos, "que tem a responsabilidade de pensar o Brasil 24 horas por dia". Jamais esqueceremos. < 


Fonte:Schwartzman

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