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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

As Décadas de Vargas na Questão Habitacional

Marta Caetetu - às 21h 43

1942 - Construção do IAPI  de Realengo,
no Rio de Janeiro
O Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI) foi o grande financiador de construções habitacionais sociais do período aqui analisado por Nabil Bonduki.






Origens da habitação social no Brasil 

Nabil Georges Bonduki* Análise Social, vol. xxix (127), 1994 (3.°), 711-732

O objetivo deste paper é analisar as origens da intervenção estatal na questão da habitação de interesse social no Brasil, com destaque para o período de Vargas (1930-1954). Ainda serão destacadas as repercussões desta intervenção no quadro de soluções de moradia e de acesso à terra em São Paulo. 

Trata-se do momento em que o Estado brasileiro passa a intervir tanto no processo de produção como no mercado de aluguel, abandonando a postura de deixar a questão da construção, comercialização, financiamento e locação habitacional às «livres forças do mercado», que vigorou até então. Esta nova postura do Estado brasileiro na questão da habitação é parte integrante da estratégia muito mais ampla, colocada em prática pelo governo Vargas, de impulsionar a formação e fortalecimento de uma sociedade de cunho urbano-industrial, capitalista, mediante uma forte intervenção estatal em todos os âmbitos da atividade econômica (Oliveira, 1971). 

Entre as medidas mais importantes implementadas pelo governo no que diz respeito à questão habitacional, estiveram o decreto-lei do inquilinato, em 1942, que, congelando os aluguéis, passou a regulamentar as relações entre locadores e inquilinos, a criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Previdência e da Fundação da Casa Popular, que deram início à produção estatal de moradias subsidiadas e, em parte, viabilizaram o financiamento da promoção imobiliária, e o Decreto-Lei n.° 58, que regulamentou a venda de lotes urbanos a prestações. 



De uma maneira geral, pode-se dizer que estas medidas visavam, ao menos na aparência, garantir melhores condições de habitação e de vida urbana aos trabalhadores, aspecto que a propaganda oficial sempre buscou enfatizar1. Constituem, portanto, o contraponto, a nível urbano, do imenso arsenal de medidas tomadas por Vargas e seus seguidores objetivando regulamentar as relações entre o trabalho e o capital e defender as condições de trabalho dos assalariados urbanos, ações que criaram para o ditador a imagem de «pai dos pobres». Considerando-se que as leis trabalhistas já foram exaustivamente analisadas nos seus múltiplos desdobramentos, o estudo da ação estatal sobre a habitação 

* Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo. 
1 O Estado Novo criou um departamento dirigido especificamente para a propaganda (Departamento de Imprensa e Propaganda — DIP), utilizando com frequência a rádio e o cinema. 0 Ministério de Trabalho, por sua vez, passou a dispor de um boletim que expunha com periodicidade aspectos da «política social» do governo. 777 


Nabil Georges Bonduki

neste período — que ainda permanece pouco explorada — ganha grande relevância, pois trata-se do momento em que, ao nosso ver, a questão habitacional é assumida pelo Estado e pela sociedade como uma questão social, dando início a uma ainda incipiente política habitacional no país. 

O estudo se referencia na repercussão desta política na situação concreta de moradia e de produção habitacional em São Paulo, que passa no período por grandes transformações urbanas e económicas. Embora São Paulo seja a referência de pesquisa, tanto no que se refere à produção dos primeiros conjuntos habitacionais promovidos pelo poder público, através dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, como em relação ao processo de produção privada de moradias, fortemente abalado pela lei do inquilinato, e em relação à ação espontânea dos moradores, através do auto-empreendimento da sua casa em loteamentos periféricos, os processos estudados valem, de uma maneira geral, para várias outras cidades brasileiras. 

1. HABITAÇÃO NA REPÚBLICA VELHA: ESTADO AUSENTE
DA PRODUÇÃO DE MORADIA E DA REGULAMENTAÇÃO
DO MERCADO DE LOCAÇÃO
As iniciativas tomadas pelos governos da República Velha (1889-1930) no sentido de produzir habitação ou de regulamentar o mercado de locação residencial são praticamente nulas (GAP, 1985). 

Fiel ao liberalismo predominante, o Estado privilegiava a produção privada e recusava a intervenção direta no âmbito da construção de casas para os trabalhadores. Assim, suas iniciativas restringiam-se à repressão às situações mais graves de insalubridade, via legislação sanitária e ação policial, e à concessão de 
isenções fiscais, que beneficiavam basicamente os proprietários de casas de locação, ampliando sua rentabilidade (Rolnik, 1981). 

A produção da moradia operária no período de implantação e consolidação das relações de produção capitalistas e de criação do mercado de trabalho livre, que corresponde aos primórdios do regime republicano, era uma atividade exercida pela iniciativa privada, objetivando basicamente a obtenção de rendimentos pelo investimento na construção ou aquisição de casas de aluguel (Bonduki, 1982). 

A estrutura da economia brasileira estava centrada nas atividades agro-exportadoras, havendo, nas cidades, forte predomínio do comércio sobre a produção e ocupando a indústria um papel subordinado e secundário. Dada a reduzida capacidade de a indústria absorver novos e crescentes investimentos, o «negócio» de possuir casas de aluguel era uma segura e excelente forma de rentabilizar poupanças e recursos disponíveis na economia urbana, fortemente aquecida pela expansão da atividade agrário-exportadora. 

Num momento de enorme crescimento das cidades brasileiras, principalmente na região Sudeste, com destaque para São Paulo e Rio de Janeiro, que recebiam forte contingente populacional egresso da imigração estrangeira, a valorização imobiliária era acentuada e se constituía numa importante opção de investimento para reserva de valor, na ausência de um mercado de capitais 

712 (Langenbuch, 1971; Melo, 1992).


Origens da habitação social no Brasil

São Paulo, sobretudo, sediando a economia cafeeira e recebendo um fluxo imigratório intenso (a população da cidade cresceu de 40 000 habitantes em 1886 para 260 000 em 1900 e 580 000 em 1920), apresentava um superdinâmico processo imobiliário, com forte expansão urbana e uma hipervalorização de glebas, terrenos e prédios. Em poucos anos, chácaras de características eminentemente rurais eram loteadas e transformadas em zona urbana, fortemente ocupada. Assim, além da rentabilidade da locação habitacional, o investimento imobiliário garantia não só uma reserva de valor, como um intenso processo de valorização (Bonduki, 1982). 

É neste contexto que se inseria a intensa produção habitacional realizada pela iniciativa privada para locação. Em São Paulo, em 1920, apenas 19% dos prédios eram habitados pelos seus proprietários, predominando largamente o aluguel como forma básica de acesso a moradia (Bonduki 1982). Considerando-se que boa parte dos prédios ocupados pelos trabalhadores de baixa renda eram cortiços e, portanto, ocupados por mais de uma família, conclui-se que quase 90% da população da cidade, incluindo quase a totalidade dos trabalhadores e da classe média, era inquilina, inexistindo qualquer mecanismo de financiamento para aquisição da casa própria. 

Desta forma, uma espécie de «rentiers urbanos» pôde produzir uma ampla diversidade de soluções habitacionais de aluguel para os diferentes segmentos sociais e faixas de renda, dando origem a uma gama variada de tipologias que marcaram a paisagem da cidade nas primeiras décadas do século, quando a moradia operária se localizava próxima à zona industrial. 

Surgem, assim, inúmeras soluções habitacionais, a maior parte das quais buscando economizar terrenos e materiais através da geminação e da inexistência de recuos frontais e laterais, cada qual destinado a uma capacidade de pagamento do aluguel: do cortiço, moradia operária por excelência, sequência de pequenas 
moradias ou cômodos insalubres ao longo de um corredor, sem instalações hidráulicas, aos palacetes padronizados produzidos em série para uma classe média que se enriquecia, passando por soluções pobres mas decentes de casas geminadas em vilas ou ruas particulares que perfuravam quarteirões para aumentar 
o aproveitamento de um solo caro e disputado pela intensa especulação imobiliária. 

Superada a aguda carência de moradias que ocorreu no início da República (lembrar que São Paulo multiplicou por seis sua população num espaço de 14 anos!), a produção de casas e cortiços atendeu, do ponto de vista quantitativo, às necessidades da população, com exceção dos períodos críticos da Primeira Guerra Mundial e da revolução de 1924. Este relativo equilíbrio entre oferta e procura de habitação, no entanto, era proporcionado graças à produção ou adaptação para moradia popular de pequenas células insalubres, de área reduzida e precárias condições habitacionais, genericamente denominadas «cortiços», consideradas o inimigo número 1 da saúde pública. 

A questão dos valores dos aluguéis esteve, no período, quase sempre entregue à livre negociação entre o locador e o inquilino, não intervindo o Estado na sua regulamentação, como era a regra da ação estatal no que se referia aos diversos 713 


Nabil Georges Bonduki

aspectos da reprodução da força de trabalho. O Código Civil, que regulava a
questão, estabelecia o «império absoluto da propriedade», não prevendo qualquer
regra na fixação dos aluguéis, que eram regidos por contratos particulares.
Apenas num curto período, entre 1921 e 1927, houve uma pouco eficaz lei do
inquilinato, que congelou os aluguéis, como uma resposta à crise de moradia e
elevação exagerada dos valores locativos gerada pela conjuntura da guerra, quando
o nível de construção caiu a quase zero. Este congelamento de aluguéis foi
inóquo, no entanto, posto que a lei não restringia os despejos, que se tornaram

o expediente que permitiu aos locadores escapar da regulamentação e recompor
os valores dos aluguéis defasados.
Sem a proteção do Estado, a definição do valor de locação constituía-se no
principal ponto de conflito entre proprietários e inquilinos e a questão central que
movia os inquilinos a se mobilizarem em torno do problema da habitação. Se, por
um lado, o Estado não intervém na produção de moradias e no controle dos aluguéis,
as organizações populares também não parecem reconhecer no Estado o interlocutor
capaz de dar andamento a suas reivindicações em torno da questão. Embora a forte
influência do anarquismo no movimento operário explique, em parte, esta postura de
não reconhecimento da responsabilidade estatal na questão da moradia, a própria
caracterização do Estado no período liberal, sem interferir no âmbito da reprodução
da força de trabalho contribuía no sentido de levar os movimentos populares a
negarem o poder público como uma instância à qual deveriam ser dirigidas reivindicações.
Em suma, o Estado não assumia a responsabilidade de prover moradias
nem a sociedade lhe atribuía esta função.

Esta regra geral, no entanto, não impediu o surgimento de algumas poucas iniciativas de produção estatal, basicamente no Rio de Janeiro e Recife, exceções que claramente confirmam a regra. «La construcción directa de la vivienda popular por el gobierno, solución ya de este siglo — el Brasil ya era República
— de hace unos 30 anos, ... no pudo ir adelante. Razones multiples hicieron que esa tentativa del gobierno brasileño no pasase de sus primeros ensayos. Existen todavia algunas viviendas populares construídas directamente por el gobierno, con recursos de su presupuesto, pero número muy pequeño. Se comprobó que ésta no era una solución brasileña» (República Argentina, 1940, i, 62).

É o caso da construção do provavelmente primeiro grupo de moradias
construídas pelo poder público no Brasil: 120 unidades habitacionais na Avenida
Salvador de Sá (RJ), em 1906, pela prefeitura do distrito federal, que se via
fortemente pressionada pela crise habitacional gerada pela derrubada de milhares
de cortiços necessária para a abertura da Avenida Central (GAP, 1985). Ou
ainda, o início da construção, pelo governo federal, da «Vila Proletária Marechal
Hermes», que foi parcialmente «abandonada com as obras nos alicerces por
quase duas décadas» (Vargas, 1938, i, 241) — o que dá bem conta da importância
que os governos da República Velha davam à questão —, e a construção em
Recife em 1926 de 40 unidades pela Fundação A Casa Operária (GAP, 1985).

Esta Fundação, órgão do governo do estado de Pernambuco criado em 1924
714 com «a finalidade de edificar pequenas casas para habitação de pessoas pobres


Origens da habitação social no Brasil

mediante reduzido aluguel» (GAP, 1985), parece ter sido a primeira instituição
pública do país a ser criada especificamente para produzir habitação com caráter
social. A iniciativa mostra o pioneirismo de Pernambuco em relação à intervenção
do Estado na produção de habitação num momento em que em São Paulo
a questão era debatida no âmbito da prefeitura, por iniciativa do prefeito Pires
do Rio, concluindo-se que o poder público não deveria construir casas para os
trabalhadores, pois isto desestimularia a produção privada.

Defendendo o afastamento do Estado na produção direta, o relatório da comissão
encarregada de propor iniciativas para enfrentar o problema habitacional
é taxativo: «A Comissão julga dever aconselhar a máxima circunspecção na ação
direta do poder público na construção de casas populares, procurando incentivar
por todos os meios ao seu alcance a iniciativa privada [...] Não haja ilusões. No
estado atual de nossa organização social, política e econômica, a construção de
habitações populares pelo poder público diretamente ou por intermédio de
emprezas, longe de ser uma solução, será uma causa do agravamento da crise
atual. O simples anúncio de que o poder público irá construir alguns milhares de
casas que serão oferecidos por preços e aluguéis fixos será o bastante para
afastar automaticamente os capitais particulares que anualmente se empregam
em construções.» (Cintra, 1926, 333.)

A visão presente neste relatório, que aponta no sentido de se conceder favores
à iniciativa privada, para que ela possa produzir moradias mais baratas e, portanto,
a aluguéis mais baixos, é a predominante em todo o país. «O governo não deve
produzir casas para os operários mas estimular os particulares a investirem» é a
lógica que orienta, de modo geral, o Estado liberal da República Velha. E a solução
tida como a ideal, tendo recebido inúmeros incentivos do poder público, é a
promoção de vilas operárias pelos próprios industriais para servirem de moradia
a seus empregados.

As vilas operárias eram conjuntos de casas construídas pelas indústrias para
serem alugadas a baixos aluguéis ou mesmo oferecidas gratuitamente a seus
operários. Estas iniciativas tiveram um impacto importante em várias cidades
brasileiras, pois são os primeiros empreendimentos habitacionais de grande porte
construídos no país.

Vinculadas à emergência do trabalho livre no país, grande parte das vilas
operárias surgem em decorrência da necessidade de as empresas fixarem seus
operários nas imediações das suas instalações, mantendo-os sob seu controle
político e ideológico e criando um mercado de trabalho cativo. Tais necessidades
decorriam de aspectos operacionais (por exemplo, trabalhadores indispensáveis à
manutenção das máquinas ou equipamentos vitais ao funcionamento da indústria),
de mercado de trabalho (inexistência de trabalhadores qualificados ou mesmo de
trabalhadores em geral devido à localização das unidades de produção) ou político-
ideológicas (manter os seus operários sob controle, evitando greves ou paralisações,
através do relacionamento entre a perda do emprego e o despejo da casa)
(Blay, 1982).

A tendência do Estado e da elite dominante durante a República Velha sempre
foi considerar as vilas operárias como uma iniciativa modelar a ser estimula- 775


Nabil Georges Bonduki

da, pois garantia condições dignas de moradia, superando a insalubridade dos
cortiços, sem exigir a intervenção do poder público, e, ainda, proporcionando um
controle ideológico, político e moral aos trabalhadores, muito bem visto frente
ao sempre presente temor de uma revolta operária (Rago, 1985). A Vila Maria
Zélia, em São Paulo, é o modelo mais acabado deste processo de tutela do
empresariado sobre o operário. Localizada ao lado da fábrica, a Vila Maria Zélia
contava com escola, creche, igreja, armazém e salão de recreação, além, obviamente,
das moradias, permitindo um controle absoluto do tempo livre dos operários
e suas famílias. Vila exemplar em termos da qualidade habitacional, ela
realizava a utopia empresarial do controle total dos trabalhadores, sendo saudada
pelo poder público como um modelo a ser reproduzido (Rolnik, 1981).

No entanto, vilas como a Maria Zélia são raras exceções. Foram poucas as
empresas que construíram vilas modelares e alugaram moradias decentes a preços
reduzidos. Predominaram empresas que edificaram moradias apenas com o
objetivo de manter trabalhadores indispensáveis próximos a elas, atendendo um
número reduzido de seus empregados. As exceções serviram apenas como referências
sobre uma idealidade impossível de ser alcançada. Muitos industriais
agiam, na verdade, como qualquer outro investidor, que buscava rentabilizar seus
capitais em um negócio altamente lucrativo como era o aluguel de casas. Esta era
a lógica que presidia à construção da habitação popular na República Velha.

2. O ESTADO ENTRA EM CENA: SIGNIFICADO DAS POLÍTICAS
SOCIAIS NO POPULISMO
Sinteticamente, pode-se dizer que a revolução de 30 marcou um ponto de
ruptura na forma de intervenção do Estado na economia e na regulamentação das
relações capital/trabalho. A partir da destruição das regras do jogo que faziam do
poder público um mero representante dos interesses da economia agro-exportadora,
vai-se desenvolver, depois de 1930, um longo processo de criação das
novas condições que passam a fazer das atividades urbano-industriais as centrais
na nossa economia (Oliveira, 1971). A base de sustentação política do novo
regime teve de ser modificada através da incorporação de novos setores sociais
emergentes — entre os quais se destacam as massas populares urbanas.

Premido pela necessidade de legitimar o poder político que passou a deter a
partir da revolução de 30, Vargas teve de estabelecer uma solução de compromisso
de novo tipo, já que nenhum dos grupos participantes do poder — classes médias,
tenentes, oligarquias periféricas, etc. — podia oferecer as bases de legitimidade do
Estado. Surge assim na história brasileira um novo personagem: as massas populares
urbanas, que passam a garantir a legitimidade ao novo Estado brasileiro
(Weffort, 1980). Assim legitimado e de certa forma pairando sobre todas as
classes, o que significava abrir-se a todos os tipos de pressões sem se subordinar
exclusivamente aos objetivos imediatos de qualquer uma delas, o Estado brasileiro
pós-30 pode formular uma política econômica e social que, apesar de às vezes ser

716 contraditória e descontínua, apresenta certas características bem definidas.


Origens da habitação social no Brasil

Entre estas características, a necessidade de impulsionar uma política dirigida
aos trabalhadores passa a ser uma exigência tanto para firmar a solução de
compromisso com as massas como para montar uma estratégia de desenvolvimento
econômico baseado na indústria e que requeria a definição de um horizonte
de cálculo para os encargos trabalhistas das empresas capitalistas, até então
deixados ao livre jogo do mercado. É sob estas circunstâncias que deve ser vista
a longa série de intervenções de Vargas no campo trabalhista2.

A hipótese deste paper é que também a intervenção do Estado na questão
habitacional teve o duplo sentido de ampliar a legitimidade do regime e viabilizar
uma maior acumulação de capital no setor urbano através da redução do custo de
reprodução da força de trabalho.

«Necessitados do apoio das massas urbanas, os detentores do poder se vêem
obrigados a decidir, no jogo dos interesses, pelas alternativas que se enquadram nas
linhas de menor resistência ou de maior apoio popular.» (Weffort, 1966, 144.)
Como a habitação sempre representou um grande ônus e um problema dos mais
graves a ser resolvido pela classe trabalhadora urbana, visto o aluguel da moradia
consumir uma parcela considerável do salário3, a formulação pelo Estado de um
programa de produção de moradias e de uma política de proteção ao inquilinato
tinha ampla aceitação pelas massas populares urbanas e mostrava um governo
preocupado com as condições de vida da «população menos favorecida».

3. AS AÇÕES DOS GOVERNOS POPULISTAS NA HABITAÇÃO
SOCIAL: A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA?
Seria equivocado considerar que o governo Vargas e os que se lhe seguiram
chegaram a formular uma política habitacional articulada e coerente. Não houve,
efetivamente, a estruturação de uma estratégia para enfrentar o problema nem a
efetiva delegação de poder a um órgão encarregado de coordenar a implementação
de uma política habitacional em todos seus aspectos (regulamentação do mercado
de locação, financiamento habitacional, gestão dos empreendimentos e política
fundiária). E, menos ainda, um ação articulada entre os vários órgãos e ministérios
que de alguma maneira interferiram na questão.

A maneira como se deu a criação pelo governo Dutra, em 1946, da Fundação da
Casa Popular, uma resposta do Estado à crise de moradia no pós-guerra, é, contraditoriamente,
o melhor exemplo desta ausência de política (Melo, 1991;
Aureliano & Azevedo, 1980).

A proposta da Fundação da Casa Popular revelava objetivos surpreendentemente
amplos, demonstrando até mesmo certa megalomania (ela se propunha
financiar, além de moradia, infra-estrutura, saneamento, indústria de material de

2 Vargas instituiu as leis trabalhistas, criou os Institutos de Previdência e Pensões e acabou
com a liberdade sindical, estabelecendo o sindicalismo compulsório e dependente do Estado.

3 Diversas pesquisas realizadas entre 1930 e 1940 apontavam para que cerca de 20% dos
orçamentos familiares eram gastos com o aluguel. 77 7


Nabil Georges Bonduki

construção, pesquisa habitacional e até mesmo a formação de pessoal técnico dos

municípios); no entanto, sua fragilidade, carência de recursos, desarticulação
com os outros órgãos que, de alguma maneira, tratavam da questão e, principalmente,
a ausência de ação coordenada para enfrentar de modo global o problema
habitacional mostram que a intervenção dos governos do período foi pulverizada
e atomizada, longe, portanto, de constituir efetivamente uma política.

Podemos atribuir este fato mais à existência de lutas políticas e desarticulação
no âmbito do próprio aparato estatal do que à ausência de uma visão ampla que
permitisse formular uma estratégia global para equacionar o problema. O debate
intelectual, com participação inclusive de técnicos e funcionários governamentais,
é intenso no período e revela uma grande amplitude nos temas abordados4.

Melo (1991) aponta o forte jogo de interesses que esteve presente no processo
de criação da Fundação da Casa Popular. Seu anteprojeto era realmente ambicioso

— uma verdadeiramente superagência, como fala Melo —, mas sua implementação
exigia a centralização sob sua gestão dos recursos acumulados nos Institutos de
Aposentadoria e Pensões (IAPs), com a extinção ou centralização de suas carteiras
prediais. A forte resistência dos IAPs — ligados aos esquemas populistas dos
partidos governistas — e a deposição, em 1945, de Vargas — que, necessitado de
apoio popular, expressava vontade política para enfrentar com energia a grave crise
de moradia —, abortaram o projeto de um órgão de grande envergadura para formular
e implementar a política nacional de habitação, que estava sendo proposto ao final
do Estado Novo.
O fracasso da Fundação da Casa Popular como órgão central e coordenador de
uma emergente «política habitacional», no entanto, não obscurece o fato de que sua
criação, como o primeiro órgão nacional destinado exclusivamente à provisão de
moradias para a população de baixa renda, representou o reconhecimento de que o
Estado brasileiro tinha obrigação de enfrentar, através de uma intervenção direta, o
grave problema da falta de moradias. Embora as carteiras prediais dos IAPs sejam
anteriores, estes órgãos não eram destinados especificamente a enfrentar o problema
de habitação, e sim instituições previdenciárias, agindo complementarmente
dentro de uma lógica marcada pela necessidade de investir os imensos
fundos de reserva da Previdência Social para preservar seu valor.

A hipótese que defendemos é que no período que estamos estudando se
desenvolve um certo consenso a nível da sociedade de que a questão da habitação
dos trabalhadores não se enfrenta através do livre jogo do mercado, mas que
é indispensável a intervenção do Estado. Esta visão está clara no discurso do
empresário Roberto Simonsen, presidente da importantíssima Federação das

4 Interessante exemplo dos debates sobre habitação social realizada no período é a realização,
em São Paulo, das Jornadas de Habitação Econômica, publicadas na Revista do Arquivo Municipal,
n.° 82, PMSP, SP, 1942. Inúmeras outras fontes, como a Revista do Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio, as revistas de debates econômicos, como O Observador Económico-Financeiro e
Digesto Económico, além das publicações dos Institutos de Aposentadoria e Pensões e da imprensa

718 diária, mostram que havia, no período em estudo, amplo debate sobre a questão da habitação social.


Origens da habitação social no Brasil

Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e influente mentor da industrialização
brasileira no período getulista: «[...] problema de solução difícil por simples
iniciativa privada, porque num país onde o capital é escasso e caro e onde o
poder aquisitivo médio é tão baixo não podemos esperar que a iniciativa privada
venha em escala suficiente ao encontro das necessidades da grande massa, proporcionando-
lhe habitações econômicas [...]. O problema das moradias das grandes
cidades populares passa a ser questão de urbanismo, subordinada às necessidades
de ordem individual, social, técnica, demográfica e econômica. Para sua
integral solução, torna-se indispensável a intervenção decisiva do Estado.»
(Simonsen, 1942.)

Em decorrência do crescimento nos meios governamentais, empresariais e
acadêmicos de visões como a de Simonsen, ressaltando a incapacidade (ou desinteresse)
da iniciativa privada de produzir moradias, o governo passa a tomar
iniciativas dispersas de intervenção, como resposta à gravidade do problema.
Mostra, assim, como é característico dos regimes e governos de cunho populista,
sensibilidade para atacar questões com grande repercussão na vida do trabalhador,
como o peso do aluguel no orçamento familiar, ou de grande visibilidade
pública e apelo clientelista, como construção de conjuntos habitacionais. Assim,

o Estado brasileiro assume o problema da habitação como uma questão social;
as iniciativas tomadas, no entanto, são desarticuladas, posto que emanadas de
diferentes órgãos e interesses políticos.
O resultado é a ausência de uma política centralizada e o surgimento de uma
colcha de retalhos de intervenções. Isto, no entanto, não obscurece a importância da
ação governamental neste período, pois ela representou uma ação concreta que deu
início à idéia da habitação social no Brasil.

Não se pode deixar de ressaltar também, como veremos adiante, que algumas das
mais importantes medidas implementadas, como a lei do inquilinato, tinham alcance
muito mais amplo na estratégia económica do governo do que uma mera defesa e
garantia de moradia do inquilino e que sua adoção estava ligada a decisões tomadas
no âmbito dos ministérios económicos, dificultando sua inserção numa estratégia
exclusiva de política habitacional.

4. LEI DO INQUILINATO: A REGULAMENTAÇÃO DA RELAÇÃO
ENTRE PROPRIETÁRIOS E INQUILINOS
O decreto-lei do inquilinato, em 1942, instituindo o congelamento dos valores
locativos e regulamentando as relações entre proprietários e inquilinos, foi
uma medida de enorme alcance e que provocou grandes consequências na produção,
distribuição e consumo de moradias populares.

Trata-se de medida de grande repercussão social e económica, que suspende

o direito absoluto de propriedade e que, para se legitimar no quadro do Estado
capitalista, requereu uma justificativa onde se assume a peculiaridade da habitação
como uma mercadoria especial, onde o interesse social ultrapassa os me- 779

Nabil Georges Bonduki

canismos de mercado. Reforça, portanto, independentemente da intenção de seus

idealizadores, a visão da habitação social no Brasil.

O congelamento dos aluguéis inclui-se entre aquelas medidas aplicadas pelo
Estado populista das quais fica difícil saber se fazem parte da política econômica
ou se são apenas uma decisão útil para ampliar as bases de apoio do poder. Na
verdade, os dois objetivos estavam presentes na estratégia governamental.

No início da década de 40, a grande maioria dos trabalhadores e da classe média
eram inquilinos5. Como o aluguel representava uma parcela fixa de grande peso a
ser despendida mensalmente, seu congelamento teve forte impacto para as massas
urbanas — os índices do custo de vida e da inflação subiram exageradamente desde
1938 —, ampliando as bases de sustentação do regime. No entanto, é preciso
ressaltar que o governo sempre procurou supervalorizar o aspecto cie «defesa da
economia popular» da lei, quando este foi apenas um dos objetivos de uma lei que
foi também instrumento de política econõmica.

Neste sentido, é importante ressaltar que entre 1937 e 1942 — antes do congelamento,
portanto — a elevação do custo da habitação foi o menor entre vários itens
de consumo popular, situando-se abaixo do aumento médio do custo de vida e muito
abaixo do aumento do custo da alimentação6. Assim, é exagerado se falar em
«abusivos aumentos de aluguéis», como fez o governo para justificar o congelamento,
sem se referir à elevação de todos os produtos de consumo popular, de resto muito
mais acentuada. Parece que se buscava atribuir à habitação um peso muito maior
do que ela realmente tinha no encarecimento geral do custo de vida para justificar
uma medida drástica de intervenção no mercado, como foi o controle dos aluguéis.

A análise da política de desenvolvimento nacional implementada no Brasil pelo
governo Vargas e seguintes revela outros aspectos significativos para a explicação
da política oficial de locação, que, praticamente, manteve o congelamento dos
valores nominais dos aluguéis entre 1942 e 1964.

Como se sabe, buscou-se impulsionar um processo de industrialização que não
contava com uma base de acumulação prévia nem com disponibilidade de capitais
externos. Seria, portanto, necessário mobilizar capitais internos, canalizando para a
empresa industrial recursos que normalmente se inclinariam para outros setores da
economia. Com esse objetivo o governo tomou uma série de medidas de controle
administrativo que substituem os mecanismos de mercado, visando fazer a economia
funcionar de forma não automática (Oliveira, 1971). Acreditamos que a lei do
inquilinato foi fixada, pelo menos complementarmente, com este objetivo.

O congelamento dos aluguéis em 1942 e suas sucessivas renovações, que faziam
as novas construções cair nas mesmas condições das demais, num período de infla


5 Em 1940 apenas 25% dos domicílios eram ocupados por seus proprietários (IBGE, 1940).

6 Segundo a Subdivisão de Documentação e Estatísticas Municipais da Prefeitura Municipal de
São Paulo, o aumento dos gastos familiares entre 1939 e 1944 foi: alimentação, 46,4%; habitação,
3,6%; total dos itens, 45,6%. Para a Associação Comercial de São Paulo, entre 1935 e 1943 os
índices foram: alimentação, 89,4%; habitação, 26,6%; geral, 58,4%. Em todas as fontes pesquisadoras,
apesar de haver discrepância entre os números, sempre o aumento do custo da habitação foi

720 menor que os demais.


Origens da habitação social no Brasil

ção crescente criaram uma situação absolutamente desfavorável ao investimento
em moradias de aluguel, forçando, ao contrário, a venda das casas então
alugadas, como forma de reaver o capital desvalorizado por aluguéis
desatualizados. Assim, o investimento em casas de aluguel, até então atraente,
deixa de ser rentável, liberando recursos e estimulando a aplicação de capitais na
indústria.

O congelamento dos aluguéis também se situa entre as medidas que visam
reduzir o custo de reprodução da força de trabalho para elevar o patamar de acumulação
da empresa capitalista sem rebaixar acentuadamente as condições de vida dos
trabalhadores, uma das estratégias utilizadas para intensificar o processo de crescimento
industrial, salvaguardando o pacto de classes7. Neste sentido, a lei do
inquilinato servia excepcionalmente ao modelo de desenvolvimento econômico que
se impulsionava, seja por canalizar recursos ao setor industrial, seja por contribuir
para a redução do valor da força de trabalho e dos salários.

5. AS REPERCUSSÕES DA LEI DO INQUILINATO: COLAPSO DA
PRODUÇÃO RENTISTA E CRISE DE MORADIA DOS ANOS 40
As consequências da lei do inquilinato para o processo de produção habitacional
são muito fortes e geram escassez, mostrando que nem sempre a adoção de instrumentos
supostamente sociais no âmbito de intervenções no mercado habitacional é
positiva. A iniciativa privada, principalmente os grandes investidores, reduz drasticamente
a construção de casas de aluguel, aumentando de forma dramática a
carência de habitações nas grandes cidades brasileiras. Estas, ademais, recebiam um
intenso fluxo migratório interno, do campo para as cidades, provocado pelas novas
condições económicas, principalmente crescimento industrial8. Gera-se, assim,
como mostram Bonduki (1988) e Melo (1992), uma grave crise da habitação9.

A estabilização dos valores locativos pode ter beneficiado os já alojados. Este
benefício, entretanto, é relativo: de um lado, os incrementos salariais, quando ocorrem,
baseiam seus cálculos, no que se refere ao custo da habitação, nos valores dos
aluguéis congelados, o que significa que os já alojados somente não foram tão
prejudicados como os demais; por outro lado, os proprietários vão utilizar todos os
expedientes possíveis para elevar os rendimentos de suas casas de aluguel ou reaver
seus imóveis, recuperando assim o direito pleno de propriedade.

A efetivação da maior parte destes expedientes passará pelo despejo ou pela sua
ameaça, que se constitui no principal problema que afligiu os inquilinos. Os despejos
se intensificam nos anos do pós-guerra, quando se tornou quase impossível

7 Diversos estudos realizados no período por instituições voltadas para equacionar uma política
de desenvolvimento econômico e social sugerem soluções indirectas para melhorar o padrão de vida
operário, ao invés de aumentos salariais. A redução do custo de habitação aparece com frequência (v.
Araújo, 1942).

8 A população de São Paulo eleva-se, entre 1940 e 1950, de 1 300 000 habitantes para 2 250 000
(IBGE, 1940 e 1950).
9 A imprensa diária é farta em reportagens sobre o dramático problema da moradia. 721


Nabil Georges Bonduki

encontrar uma moradia por aluguel compatível com o salário percebido pela
população de baixos rendimentos, uma vez que os aluguéis novos eram
elevadíssimos em decorrência da escassez de oferta. O despejo foi, neste período,

o grande problema habitacional dos bairros operários tradicionais e consolidados
de São Paulo e das principais cidades brasileiras. Tornou-se o instrumento concreto
do processo de expulsão da população das moradias de aluguel, produzidas
comercialmente por empreendedores privados em áreas urbanas bem equipadas
e situadas próximas aos locais de emprego.
Considerando que a grande transformação que ocorreu na produção e distribuição
de moradias populares em São Paulo foi o gradativo abandono pela iniciativa
privada do mercado habitacional de baixa renda e a consolidação do padrão
periférico de crescimento urbano, onde o próprio morador produz sua casa, o
despejo foi um dos principais instrumentos deste processo de transformação.

É difícil estimar o total de famílias despejadas durante o período mais agudo
da crise de habitação, entre 1945 e 1948. Uma estimativa aproximada calcula que
cerca de 10% da população paulistana foi despejada neste período (Bonduki,
1988). Esta imensa dimensão dos despejos é explicada pelos mecanismos formais
e informais que passaram a reger o mercado de locação.

O decreto de 1942 congelou por dois anos todos os aluguéis pelos valores de
dezembro de 1941. Os proprietários passaram, assim, a ter rendimentos reais
declinantes, sendo fortemente penalizados numa economia crescentemente
inflacionada. Sem instrumentos legais para aumentar os aluguéis, o jeito passou
a ser despejar os inquilinos para, na nova situação, elevar os valores locativos,
alterar a destinação dos imóveis ou mesmo renovar a construção.

Como as novas construções eram insuficientes para atender uma demanda
crescente, o proprietário que tivesse sua casa desocupada poderia alugá-la a um
preço muitas vezes superior ao valor congelado. Além disso, frente à cada vez
mais grave falta de moradia, os locatários passam a só alugar suas moradias
mediante o pagamento antecipado de uma quantia fixa, a título de luvas. Assim,
despejar o inquilino antigo passa a ser um excelente negócio, pelo menos a curto
prazo, pois com o tempo novamente os aluguéis tendiam a se desvalorizar.

Os dispositivos legais não garantiam, efetivamente, tranquilidade aos inquilinos.
Muito pelo contrário, apenas delimitavam claramente o terreno onde se daria

o conflito entre inquilinos e proprietários: o campo das artimanhas e brechas
judiciais. Frente a uma resistência «legal» da população contra as burlas da lei do
inquilinato, vai se desenvolvendo gradativãmente uma série de expedientes jurídicos
para possibilitar o despejo legal. Os casos de despejo previstos na lei eram
limitados; no entanto, os advogados dos proprietários encontraram inúmeras «brechas
» na legislação que permitiram aos juizes mais favoráveis aos proprietários
despachar ordens de despejo10.
10 Os casos de despejos estavam limitados aos proprietários que conseguissem provar terem
necessidade da casa para moradia própria, para si ou para ascendente ou descendente directo, ou
722 que tivesse planta aprovada para construir edificação de maior área no terreno resultante da


Origens da habitação social no Brasil

As diversas leis do inquilinato sempre deixaram abertas as portas que acabam
possibilitando o despejo, pois no Congresso o debate em torno do assunto era
polêmico, com a formação de lobbies de inquilinos e proprietários e longas discussões
entre os defensores do caráter social da habitação e do direito de propriedade.
Para influenciar as decisões governamentais e, a partir da redemocratização,
sensibilizar o Congresso, os inquilinos se organizaram na Aliança de Solidariedade
e Proteção aos Inquilinos, que em 1946 chegou a ter 5000 membros (Melo, 1992);
com o mesmo objetivo surgiram também associações de proprietários.

Muitos expedientes, no entanto, passavam por fora do «espírito da lei».
Assim, o proprietário que contasse com recursos para levar adiante um processo
judicial podia, caso não encontrasse uma forte resistência do inquilino, conseguir

o despejo legal, utilizando-se de advogados especializados neste tipo de ação que
usavam, via de regra, argumentos falsos.
Os despejos passam a crescer à medida que os anos foram se passando e o
controle dos aluguéis permaneceu, tornando a situação cada vez mais incomoda para
os proprietários. A especulação imobiliária e a elevação dos preços dos imóveis,
sobretudo nas áreas centrais, agravam a situação.

A valorização imobiliária se explica por motivos de ordem geral, em decorrência
dos elevados índices de inflação e do crescimento da demanda gerados pela expansão
económica, e por razões locais, consequência das transformações urbanas.

Em São Paulo, durante o Estado Novo (1935-1945), a implantação, pelo prefeito
Prestes Maia, do Plano de Avenidas, na zona central e adjacências, gerou um
inusitado movimento imobiliário, valorizando os imóveis situados nas zonas de
intervenção. Foram abertas ou alargadas dezenas de vias que visavam ampliar o
centro de negócios e revitalizar zonas que, embora fossem centrais, eram consideradas
deterioradas e, portanto, habitadas pela população pobre da cidade. Processos
semelhantes de grandes obras viárias e renovações urbanas ocorreram em várias
outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e Recife.

A abertura ou alargamento de ruas, as demolições e, consequentemente, as
modificações imobiliárias provocam uma acentuada elevação nos preços dos terrenos
nas áreas da cidade atingidas pela «cirurgia urbana», acompanhada por um
intenso processo de verticalização. Este estava sendo promovido por um novo setor
de empreendimentos imobiliários, os incorporadores — que, por sua vez, também se
beneficiavam das facilidades de crédito garantidas tanto pelos IAPs (Plano C) como
pela expansão das caixas econômicas promovidas pelo governo Vargas (Melo,
1992; Bonduki, 1981; Ribeiro, 1992).

A possibilidade aberta pela lei do inquilinato de se despejar locatários para
edificar construção de maior dimensão facilita enormemente o processo de renovação
das edificações, pois, enquanto o valor de venda dos terrenos se elevava, o
aluguel real dos imóveis locados se reduzia. Esta disparidade imensa entre o

demolição do prédio alugado. Muitas acções foram, no entanto, montadas de modo artificial, com
alegações mentirosas. Segundo pareceres de advogados da época, apenas em 30% das acções havia

sinceridade. 723


Nabil Georges Bonduki

valor do terreno e o aluguel de um prédio nele construído foi uma das causas
principais que levaram os proprietários a procurar se desvencilhar dos antigos
inquilinos através da própria demolição da construção, facilitando um acelerado
processo de verticalização11.

Os efeitos da lei do inquilinato foram muito fortes. Suas consequências, porém,
não podem ser compreendidas fora de um quadro mais geral do processo de
transformação das soluções de moradia em São Paulo, principalmente no âmbito
da crescente difusão da casa própria autoconstruida, que foi a saída encontrada
pelos trabalhadores frente ao colapso da produção rentista da habitação popular.

6. ORIGEM DA PRODUÇÃO ESTATAL DA HABITAÇÃO SOCIAL
O início, em larga escala, da produção de conjuntos habitacionais pelo Estado,
cujo marco foi a criação, em 1937, das carteiras prediais dos Institutos de
Aposentadoria e Pensões (IAPs), seguida pela instituição da Fundação da Casa
Popular, em 1946, foi outra iniciativa relevante dos governos populistas no
sentido da habitação social. A produção estatal de moradias para os trabalhadores
representa o reconhecimento oficial de que a questão habitacional não seria
equacionada apenas através do investimento privado, requerendo, necessariamente,
intervenção do poder público. Ao contrário do que ocorria antes de 30,
quando a participação estatal na produção de moradia era considerada «uma
concorrência desleal à iniciativa privada», a partir do governo Vargas forma-se
uma forte corrente de opinião segundo a qual torna-se indispensável a intervenção
do Estado. Assim, ninguém contesta, em tese, esta ingerência do governo
num setor de produção até então praticamente cativo da iniciativa privada.

Na verdade, os grandes investidores já estavam gradativamente deixando de
investir na produção de «casas de aluguel», setor de intensa atividade na República
Velha, que, como vimos, apresentava alta rentabilidade e segurança frente aos outros
negócios possíveis.

À medida em que a economia se diversificava e cresciam as oportunidades de
investimento industrial, na segunda metade da década de 30 e, sobretudo, nos anos
40, os que dispunham de capital começam a se desinteressar pela construção de
casas populares para locação. Evidentemente, o congelamento dos aluguéis acentuou
drasticamente este processo (era uma das intenções da lei do inquilinato), de modo
que a entrada do poder público na promoção, financiamento e construção de conjuntos
habitacionais tem mais o sentido de ocupar o espaço deixado pela iniciativa
privada do que de concorrer com ela.

Por outro lado, a progressiva redução dos investimentos privados na produção
habitacional tomou a indústria de construção interessada em receber recursos

11 Projeto-lei apresentado por deputado comprometido com os inquilinos na Câmara de

Deputados, proibindo inteiramente as demolições e os despejos, nunca chegou a ser colocado em

votação, permanecendo a ambiguidade da lei, que estava plenamente de acordo com a maneira como

724 o Estado populista manipulava os setores populares (Bonduki, 1988).


Origens da habitação social no Brasil

públicos para manter sua atividade, situação que, aliás, se mantém até hoje. Neste
sentido, pode-se inferir que o desenvolvimento da concepção de habitação social,
definida como um setor de atividade económica em que é indispensável a presença
estatal, interessava à indústria da construção civil. A defesa rigorosa da
intervenção estatal na produção de moradias, feita por homens como Roberto
Simonsen, líder empresarial originário do setor da construção civil, talvez seja
gerada pela defesa destes interesses, mais do que uma suposta preocupação
social.

Efetivamente, a criação das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria
e Pensões representou um mecanismo através do qual os imensos recursos que
afluíam aos cofres dos IAPs e que não tinham destinação imediata (estes recursos
proviam do depósito compulsório de empresas e trabalhadores para o pagamento
futuro de aposentadorias e pensões) podiam financiar a construção civil, não só
na habitação social (Planos A e B), mas também no Plano C, que financiava a
incorporação imobiliária para os setores médios (Farah, 1984; Melo, 1987).

Em relação à Fundação da Casa Popular, a questão é um pouco mais complexa,
pois setores da indústria da construção civil se opuseram à sua criação
como uma superagência da habitação social, temendo que ela monopolizasse
recursos, inclusive os dos IAPs, e acabasse por contribuir na escassez de materiais
de construção, principalmente cimento, trazendo dificuldades para as incorporações
imobiliárias privadas destinadas a renda média (Melo, 1987 e 1991).

Embora tanto as carteiras prediais dos IAPs como a Fundação da Casa Popular
tivessem objetivo de viabilizar a construção de habitação, a diferença entre elas
é marcante. Nos IAPs, a função de edificação é secundária (seu objetivo primeiro
é garantir aposentadoria e pensões aos associados), servindo também como forma
de garantir rentabilidade para as reservas dos institutos, enquanto que o objetivo
único da FCP é produzir moradia para a população de baixa renda.

Frente à baixa rentabilidade dos investimentos em habitação social nos IAPs
(Planos A e B), trava-se no interior destes organismos intenso debate sobre a
pertinência deste investimento, que poderia colocar a perder suas reservas necessárias
ao pagamento das aposentadorias, postura que enfim prevaleceu, redundando
numa substancial redução da produção de habitação social dos institutos,
sobretudo a partir de 1954. Apesar dos protestos de sindicatos, políticos e imprensa,
gradativamente os IAPs optam por investir quase que exclusivamente no Plano
C, cuja rentabilidade estava garantida por financiar a produção habitacional para
a renda média, além de outras aplicações de alta lucratividade (Farah, 1984).

Os recursos da FCP, por sua vez, eram limitados. Dependia, basicamente, do
orçamento da União, uma vez que interesses regionais impediram a viabilização
da cobrança da taxa de 1% sobre as transações imobiliárias, prevista originalmente
no decreto que a criou, enquanto que a oposição dos IAPs também
inviabilizou a utilização das suas reservas pela FCP (Melo, 1987). Os parcos
resultados obtidos pela FCP refletem esta penúria. Finalmente, a ausência de
critérios sociais rigorosos para garantir o retorno dos investimentos realizados
num período em que a inflação corroía os valores locativos e prestações, gerada 725


Nabil Georges Bonduki

pela predominância de uma visão clientelista e paternalista ( que é o inverso do
que deveria orientar uma política de habitação social), reduziu e finalmente
inviabilizou a capacidade de ação destas instituições.

A expressão quantitativa da produção destes organismos, embora reduzida
frente às necessidades de moradia da população urbana brasileira, está longe de
ser desprezível, como muitas vezes tem se afirmado. Principalmente no período
de maior intensidade das atividades das carteiras prediais dos IAPs (1946-1950),
a produção estatal de habitação é bastante significativa, chegando, no distrito
federal (Rio de Janeiro), a representar cerca de 25% do total de imóveis licenciados
nesse período (Varon, 1988).

Uma análise crítica desta produção deve ser relativizada, levando-se em conta
que antes destas iniciativas o poder público praticamente nada realizava no campo
da habitação social e que, ao contrário do que aconteceu a partir de 1964, com a
criação do BNH, não existiam taxas ou depósitos compulsórios cobrados especificamente
para financiar a produção habitacional, como é o caso do FGTS.

Assim, uma produção superior a 140 000 unidades habitacionais (número parcial,
posto incluir apenas a ação dos IAPs e da FCP, excluindo a produção realizada por
estados, municípios e os financiamentos habitacionais do Plano C dos IAPs), abrigando
quase 1 milhão de pessoas nas grandes cidades brasileiras, não chega a ser
decepcionante.

Produção ou financiamento estatal de habitação

(excluindo a produção realizada por estados e municípios)

[TABELA N.° 1]

IAPs IAPs

FCP Total

(Plano A) (Plano B)

47 789 76 236 16 964 140 989

Ainda sem entrar nos aspectos qualitativos, é possível afirmar, frente a esta
produção expressiva, que no período populista a questão da habitação social
impõe-se na sociedade brasileira como responsabilidade do Estado. Se, por um
lado, a iniciativa do poder público, ao criar em 1937 as carteiras prediais, na
verdade se antecipou à própria reivindicação social e dos setores empresariais,
a partir do momento em que esta intervenção se tornou uma realidade e, sobretudo,
com o aguçamento da crise de moradia nos anos 40, o Estado passou a
sofrer uma crescente pressão, não podendo mais deixar de atuar neste setor.

7. A QUALIDADE DA PRODUÇÃO HABITACIONAL DOS IAPs
Ao contrário da Fundação da Casa Popular, que não deixou nenhuma marca na
726 capital de São Paulo, onde nada construiu, a produção dos IAPs é bastante signi



Origens da habitação social no Brasil

ficativa do ponto de vista da qualidade da intervenção. Os conjuntos representam
uma face quase deconhecida da implantação de arquitetura moderna no Brasil,
tendo sido pioneiros como empreendimentos promovidos pelo poder público.

Esta análise ganha maior relevância se comparados com o que se realizou depois
de 1964. Diferentemente dos conjuntos do período do BNH, boa parte dos núcleos
habitacionais dos IAPs estavam localizados em zona de urbanização já consolidada
na época, como a Moóca, Baixada do Glicério, Santo André, Bela Vista, Tatuapé,
etc, tinham dimensões compatíveis com as necessidades de uma família trabalhadora
e renovaram do ponto de vista arquitetônico e urbanístico, aplicando vários
pressupostos de racionalismo e introduzindo o conceito de habitação econômica nos
seus projetos. Neste sentido, é nítido que pelo menos uma parte da produção
habitacional realizada pelos institutos, principalmente pelo IAPI, está fortemente
influenciada pela produção habitacional pública na Europa, com marcante
vinculação ao movimento moderno, que buscou soluções para viabilizar uma
produção massiva de habitação e incorporar equipamentos sociais nos conjuntos.

Dentre os aspectos que merecem, numa breve análise, ser destacados está:

1.
A introdução de blocos de apartamentos multifamiliares padronizados, de
vários pavimentos, que constitui uma novidade na produção de habitação
para trabalhadores no Brasil. Até então sempre se construíram diferentes
tipologias baseadas em casas unifamiliares. Além de inúmeros projetos de
conjuntos com blocos de três a cinco pavimentos (Conjunto residencial da
Moóca, Baixada do Glicério, Santa Cruz, etc), destaca-se a construção de
edifícios de doze a dezoito andares, em alguns casos com apartamentos
tipo duplex (edifício Japurá);
2.
A introdução de várias soluções propostas no repertório da arquitetura
moderna, como pilotis (Conjunto de Santo André, Moóca), implantação
racional e cartesiana (Baixada do Glicério), utilização da cobertura para
atividades recreativas (Japurá), limpeza de ornamentação nas fachadas, etc.
A historiografia da arquitetura no Brasil tem ignorado esta produção,
destacando, no âmbito da habitação social, apenas os projetos de Pedregulho
e Gávea; no entanto, vários destes empreendimentos são anteriores,
como o conjunto do IAPI de Santo André, inaugurado em 1942 e que é pioneiro
em vários aspectos na introdução da arquitetura moderna no Brasil;
3.
A qualidade, solidez e tamanho dos apartamentos e casas construídas.
A preocupação dos institutos com a qualidade não pode ser comparada com
nada do que se fez posteriormente em termos de habitação social. As unidades
habitacionais eram amplas, muito bem detalhadas e construídas com
cuidado;
4.
O excelente resultado em termos de projeto e obra deve ser atribuído
também à participação dos arquitetos, que participaram ativamente nestes
empreendimentos. Em boa parte da produção dos IAPs, arquitetos experientes
puderam contribuir nos projetos destes conjuntos habitacionais,
como Paulo Antunes Ribeiro, MMM Roberto, Eduardo Knesse de Melo,
Hélio Uchoa Cavalcanti e Marcai Fleury de Oliveira.

Nabil Georges Bonduki

Outro aspecto a ser destacado é a forma de acesso às unidades habitacionais,
Embora a ideologia dominante desde o Estado Novo buscasse estimular o acesso
à casa própria, os institutos conservavam a propriedade dos conjuntos habitacionais
produzidos pelo Plano A, alugando as moradias aos seus associados. Esta opção
foi consequência de uma perspectiva presente na burocracia dos IAPs, que julgava
necessário manter a propriedade dos conjuntos como uma forma de impedir a
delapidação das reservas da Previdência. Esta política explica, em parte, a busca
de qualidade e durabilidade nos conjuntos. Entretanto, num país de inflação alta
e regido por uma lei do inquilinato que impedia aumentos de aluguéis, o valor
obtido com a locação das unidades habitacionais tornou-se progressivamente
insignificante. Já os financiamentos concedidos para construção ou aquisição da
casa própria (Plano B), a definição de prestações fixas, também tornaram irrisório

o retorno do investimento, delapidando as reservas dos institutos.
Nestas condições, conseguir uma unidade ou um financiamento habitacional
dos institutos num período de crise de moradia passava a ser um privilégio que
favoreceu uma política clientelista desenvolvida a partir do Ministério do Trabalho,
a quem se subordinavam os IAPs e a FCP.

Sem conseguirem reaver os investimentos realizados, em poucos anos os
institutos foram deixando de construir habitações populares. Perdeu-se, assim,
um dos mais interessantes processos de produção de habitação social do país. Os
institutos, então, passam a privilegiar ainda mais as aplicações rentáveis, que a
rigor sempre existiram, pois eram consideradas indispensáveis para valorizar os
fundos previdenciários. Concentrando uma soma significativa de recursos, os
IAPs tiveram participação importante no financiamento de inúmeras incorporações
destinadas a venda para a classe média e alta, viabilizando o processo de
renovação e verticalização das áreas centrais e nobres das principais cidades
brasileiras. Para se ter uma noção do impacto desta intervenção, ressalta-se que
apenas o IAPI, Instituto de Aposentadoria dos Industriários, financiou entre 1937
e 1950 quase 5000 unidades habitacionais para classe média, promovidas por
incorporadoras imobiliárias, 90% das quais no Rio de Janeiro, onde viabilizou a
construção de 618 edifícios de apartamentos.

Infelizmente, os institutos não deram divulgação ampla aos dados do número
de unidades financiadas para renda média, pois este tipo de investimento era
questionado como não social por sindicatos e opinião pública, impedindo uma
avaliação completa sobre a dimensão desta intervenção.

Além da relevância urbanística e arquitetônica dos empreendimentos
viabilizados pelos IAPs, a importância da ação pública esteve no fato de iniciar
um processo de produção de moradias patrocinado pelo Estado, mostrando, de
modo propagandístico, um governo preocupado em contribuir para atenuar a
crise de habitação e, ao mesmo tempo, estabelecendo padrões de qualidade
exemplar.

Mas, por outro lado, esta intervenção do poder público demarca simbolicamente
o momento em que o ónus necessário à resolução do problema da
moradia passa definitivamente para o Estado e, principalmente, dada a expressão

728 insuficiente desta produção pública, para os próprios trabalhadores.


Origens da habitação social no Brasil

Embora, de uma maneira geral, possa-se dizer que a intervenção habitacional
iniciada pelo governo Vargas e colocada em prática em todo o período populista
tivesse, em tese, sido baseada, de uma maneira geral, em critérios sociais — ao
contrário do que ocorre a partir de 64 —, seus erros e ambiguidades provocaram
efeitos contraproducentes que acabaram por contribuir para uma piora das condições
habitacionais e urbanas da moradia popular.

8.
A INTERVENÇÃO ESTATAL PELA SUA AUSÊNCIA:
O AUTO-EMPREENDIMENTO E A EXPANSÃO PERIFÉRICA
Não se pode atribuir apenas à lei do inquilinato o agravamento da crise da
habitação da década de 40. Na verdade, esta crise é consequência de um processo
mais amplo, que se caracteriza, por um lado, pela transferência para o próprio
trabalhador e para o Estado dos encargos necessários à edificação da moradia
popular — que até então era majoritariamente construída pela iniciativa privada
e paga através do aluguel por uma parcela do salário — e, por outro, pela
emergência de novos tipos de empreendimentos imobiliários, como a incorporação
de prédios de escritórios e apartamentos destinados à venda para empresas e
classes de renda mais elevada.

A lei do inquilinato atuou, sobretudo, como um instrumento deste processo
de transformação, pois, ao congelar o aluguel, provocou uma redução da parcela
do salário comprometida com o pagamento da habitação. Se para os trabalhadores
que já estavam alojados e que escaparam dos despejos a situação não se
agravou, para os milhares de migrantes recém-chegados em São Paulo ou para
os despejados encontrar uma moradia digna a um custo compatível com os
salários tornou-se impossível.

Assim, surgem ou se desenvolvem novas «alternativas habitacionais» baseadas
na redução significativa, ou mesmo na eliminação, do pagamento regular e
mensal de moradia: a favela e a casa própria autoconstruída ou auto-empreendida
em loteamentos periféricos carentes de infra-estrutura urbana.

As primeiras favelas de São Paulo e a intensificação do crescimento das
favelas no Rio de Janeiro ocorrem exatamente nesta conjuntura nos primeiros
anos da década de 40, ocupando terrenos públicos e abrigando famílias despejadas
ou migrantes recém-chegados. Em São Paulo, no entanto, ao contrário do
Rio de Janeiro, as favelas não logram expandir-se em larga escala até à década
de 70, tanto em decorrência da sua estigmatização como pelo fato de que, em
São Paulo, a alternativa casa própria em loteamentos periféricos tornou-se viável.

Neste sentido, é nítida a preocupação existente em São Paulo de viabilizar a
«solução periférica», que vinha sendo destacada como a alternativa habitacional
que mais convinha ao processo de expansão industrial, baseada em altas taxas de
acumulação 2. A edificação da casa própria a baixo custo era — de acordo com

12 A possibilidade de o trabalhador obter a casa própria, reduzindo drasticamente o custo da
habitação, era considerada a melhor saída para o problema (Araújo, 1942). 729


Nabil Georges Bonduki

o pensamento dominante na época — a melhor saída para a habitação operária,
pois garantia a «solução» do problema sem implicar numa elevação dos níveis
salariais e, ainda, difundiria a propriedade entre os trabalhadores, dando melhor
estabilidade ao sistema político e econômico. O grande problema, no entanto, era
viabilizar o acesso ao lote próprio — tanto do ponto de vista físico como financeiro
— e incutir nos trabalhadores a necessidade de se submeterem a grandes
sacrifícios para construírem, sem nenhum apoio, sua casa.

O Decreto-Lei n.° 58 de 1938, que regulamentou a aquisição de terrenos a
prestações, dando garantias ao comprador do lote, entre outros aspectos, é um
elemento importante na ampliação do padrão periférico como alternativa de habitação
popular. Até então, embora proliferassem loteamentos na área externa da
cidade, ainda não estava configurado um mercado de terrenos destinados especificamente
aos setores populares. Esse forma-se a partir da década de 30,
estruturando todo um sistema que visa estimular o trabalhador a edificar sua casa,
como a entrega, concomitantemente com a venda do lote, do material de construção
já colocado no local.

A enorme capacidade de ampliação da área urbanizável em São Paulo, realizada
através de conhecidos processos especulativos (Kowarick, 1981; Bonduki
e Rolnik, 1978), possibilitava prestações bastante baixas para os compradores de
lotes distantes e situados em zonas de ocupação pioneira13.

Os problemas desta «solução habitacional», principalmente a carência de
transporte e de infra-estrutura, assim como as dificuldades inerentes ao processo
construtivo, acabaram por não se constituir em obstáculos intransponíveis à sua
expansão, devido à absoluta ausência de alternativas, que provocava uma aspiração
crescente pela casa própria, só factível mediante tais sacrifícios. Assim, entre
1940 e 1950, cerca de cem mil novas casas próprias são edificadas em São Paulo,
elevando de 25% para 37,5% a sua participação no total de domicílios na cidade.

Ao contrário do que ocorreu na questão do inquilinato, onde houve uma forte
intervenção governamental, na questão da expansão periférica a presença estatal
limitou-se a garantir o acesso à propriedade aos compradores dos lotes — sem

o que esta solução não poderia difundir-se. Em todos os demais aspectos, como
na exigência de padrões mínimos de urbanização previstos na lei, a administração
pública fez-se ausente, como se existisse um acordo para permitir-se a
ampliação deste tipo de assentamento habitacional popular, única maneira de
superar a crise de habitação.
Na periferia, como na favela, a concepção de habitação social também esteve
presente. Não como uma ação positiva, mas como uma desculpa, que justificava
a aceitação de qualquer tipo de assentamento habitacional, por mais precário e
insalubre que fosse, pois era a única maneira de enfrentar de fato a ausência de
moradias.

13 A preocupação em garantir transporte, mesmo que precário, para a então chamada área
suburbana é explicitamente citada como condição necessária para viabilizar o padrão periférico
730 (Barros, 1942).


Origens da habitação social no Brasil

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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e Santa Olímpia», in Estudos Brasileiros, vol. 8, n.° 22, janeiro/fevereiro de 1942, ano iii, Rio
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BARROS Jr., A. S. (1942), «A habitação e os transportes», in Revista do Arquivo Municipal, n.° 82,

São Paulo.
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Nabil Georges Bonduki

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