por Marta Caetetu - às 18h 20
Globalização, Democracia e Terrorismo
Globalização, Democracia e Terrorismo
"A dialética das relações entre a globalização, a identidade nacional e a xenofobia é enfaticamente demonstrada pela atividade pública que combina esses três elementos: o futebol. Graças à televisão global, esse esporte universalmente popular transformou-se em um complexo industrial capitalista de categoria mundial (embora de tamanho modesto, em comparação com outras atividades de negócios globais). Como já disse, e muito bem: “Dessa dicotomia entre, por um lado, o ‘nacional’, último refúgio das paixões do mundo antigo, e, por outro, o ‘transnacional’, trampolim do ultraliberalismo do mundo novo, resulta, para os amantes do futebol, assim como para os meios que gravitam em torno desse esporte, uma verdadeira esquizofrenia, extremamente complexa (...) que ilustra perfeitamente o mundo ambivalente no qual todos nós vivemos.”
Praticamente desde que adquiriu um público de massa, esse esporte tem sido o catalisador de duas formas de identificação grupal: a local (com o clube) e a nacional (com a seleção nacional, composta com os jogadores dos clubes). No passado, elas eram complementares, mas a transformação do futebol em um negócio mundial e sobretudo o surgimento extraordinariamente rápido de um mercado global de jogadores nas décadas de 1980 e 1990 (especialmente depois da decisão tomada em decorrência do “caso Bosman”, em 1995, pela Corte Europeia de Justiça) criaram uma crescente incompatibilidade entre os interesses empresariais, políticos e econômicos, nacionais e globalizados, e o sentimento popular. Essencialmente, o negócio global do futebol é dominado pelo imperialismo de umas poucas empresas com nomes de marcas também globais - um pequeno número de superclubes baseados em alguns países da Europa, que competem entre si tanto nas ligas nacionais quanto, preferivelmente, nas internacionais. Seus jogadores são recrutados em todo o mundo. Com frequência apenas uma minoria - e, por vezes, uma pequena minoria - de jogadores tem a nacionalidade de país onde se situa o clube. A partir da década de 1980, eles provêm cada vez mais de países não-europeus, especialmente da África, que tinha cerca de 3 mil jogadores atuando nas ligas europeias em 2002.
Esses desenvolvimentos tiveram um efeito triplo. Do ponto de vista dos clubes, provocaram um considerável enfraquecimento da posição de todos aqueles que não estão no circuito das superligas internacionais e dos supertorneios e em especial nos clubes dos países exportadores de jogadores, notadamente nas Américas e na África. A crise dos outrora altivos clubes de futebol do Brasil e da Argentina o comprova. Na Europa, os clubes menores mantêm-se em competição com os gigantes em grande medida comprando jogadores baratos (por exemplo, iniciantes estrangeiros talentosos), na esperança de revendê-los como estrelas já descobertas aos superclubes. Jovens da Namíbia jogam na Bulgária; da Nigéria, em Luxemburgo e na Polônia; do Sudão, na Hungria; do Zimbábue, na Polônia etc.
O segundo efeito está em que a lógica transnacional da empresa de negócios entrou em conflito com o futebol como expressão da identidade nacional, tanto pela tendência a favorecer torneios internacionais de superclubes, em detrimento dos torneios tradicionais das copas e dos campeonatos nacionais, quanto porque os interesses dos superclubes competem com os das seleções nacionais, que são portadoras de toda a carga política e emocional da identidade nacional e que têm de ser formadas por jogadores que tenham o passaporte do país. Ao contrário dos superclubes, que, na verdade, podem por vezes ser mais fortes do que as próprias seleções dos seus países, estas não são permanentes. Hoje eles tendem a ser conjuntos de jogadores, muitos dos quais - a maioria, em casos extremos como o do Brasil - jogam em clubes estrangeiros, que perdem dinheiro a cada dia em que eles se ausentam, durante os períodos mínimos necessários para que treinem e joguem com suas seleções. Do ponto de vista dos superclubes e dos superjogadores, o clube tende a ser mais importante do que o país. No entanto, os imperativos não-econômicos da identidade nacional têm tido força suficiente para afirmar-se no contexto do jogo e mesmo para import o torneio internacional de seleções, a Copa do Mundo, como o elemento principal e mais poderoso da presença econômica global do futebol. Com efeito, para muitos dos países africanos e para alguns dos países asiáticos cujos jogadores se tornaram famosos (e ricos) na economia dos grandes clubes, a existência da seleção nacional de futebol estabeleceu, em alguns casos pela primeira vez, uma identidade nacional independente das identidades locais, tribais ou religiosas. Pois “a comunidade abstrata aparece com mais realismo em um grupo de onze pessoas do mesmo país”. Na verdade, até o nacionalismo inglês, recentemente revivido, encontrou sua primeira expressão público com a exibição da bandeira da Inglaterra (diferente das da Escócia, do País de Gales e da Irlanda do Norte) nos jogos da seleção inglesa de futebol.
O terceiro efeito pode ser visto na crescente proeminência do comportamento xenofóbico e racista entre os torcedores (esmagadoramente masculino), sobretudo os dos países imperiais. Eles ficam divididos entre o orgulho que sentem pelos superclubes e pelas seleções nacionais (o que inclui seus jogadores estrangeiros ou negros) e a crescente importância que competidores provenientes de povos há tanto tempo considerados inferiores alcançam nos seus cenários nacionais. Os periódicos surtos racistas que acometem os estádios de países sem história anterior de racismo - Espanha, Holanda - e a associação do hooliganismo com a extrema direita política são expressões dessas tensões."
(Texto extraído do ensaio "As nações e o nacionalismo no novo século", in: Globalização, Democracia e Terrorismo, 2007, Cia. das Letras)
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