via@Marta Caetetu

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Memórias trazidas por Uma chacina no Rio de Janeiro, por Yvonne Maggie

Enviado por MartaCaetetu - 21/09/2012 - 20h
Memórias trazidas por Uma chacina no Rio de Janeiro, por Yvonne Maggie




No dia nove de setembro os jornais noticiaram o desaparecimento de seis jovens na Baixada Fluminense. Tinham saído de casa no dia oito, sábado, para um concurso de pipas que se realizaria no caminho para uma cachoeira em Gericinó, região que pertencia ao exército antes de os traficantes tomarem conta da área. Depois disso, o exército não entra mais lá. Terminado o concurso rumaram para a cachoeira naquele sábado quente. Eram seis jovens de 14 a 19 anos. Logo se descobriu que haviam sido brutalmente mortos por um grupo de outros jovens mais ou menos da mesma idade.
Os meninos que foram soltar pipas e se divertir na cachoeira, inadvertidamente, ouviam no celular um funk da facção contrária aos igualmente jovens que dominam o tráfico da Chatuba, bairro em Mesquita, que fica perto de Gericinó.
Professora Yvonne Maggie                  21/09/2012
Essa triste história me abateu especialmente. Tenho uma longa relação com Mesquita onde morava Isaura, a pessoa mais doce e afetuosa que conheci na vida e faleceu aos 82 anos, lúcida e rodeada da filha, netas e bisnetos. Isaura era madrinha do meu filho. Passou toda sua infância em Mesquita em uma casa confortável cheia de plantas que cuidava com amor. No quintal uma frondosa mangueira quase centenária espalhava sua sombra pela varanda refrescando no escaldante verão do Rio de Janeiro toda a casa, cheia de lembranças. Era a morena mais bonita das feiras da Zona Sul carioca e gostava de arrumar o cabelo em cachos, a moda nos idos de 1960.



Isaura dizia que a parte de Mesquita onde morava era um bairro bom, mas do outro lado da linha do trem era muito perigoso. Tenho lembranças inesquecíveis das nossas tardes de conversa, comendo pão francês quentinho com manteiga e bebendo um cafezinho que só ela sabia coar. Saudades. Meu filho sempre passou férias maravilhosas naquela casa onde as crianças brincavam descalças no quintal jogando bola. O perigo estava só no outro lado. Mas, no final dos anos 1980, o bairro começou a se modificar, com bailes funks na esquina, causando desconforto aos moradores que não conseguiam dormir, e mortes violentas de jovens nos arredores da rua tranquila da casa de Isaura.  O lado de lá da linha do trem passou a ser o ponto de venda de drogas a céu aberto, mas Mesquita inteira ficou perigosa, piorando ainda mais depois que alguns morros e favelas da cidade foram “pacificadas” e ficaram sob a proteção das Unidades de Polícia Pacificadoras – as UPPs.
O lado de cá da linha do trem também é meu conhecido. Tenho um afilhado que mora perto da esquina onde se vende droga com a maior facilidade. Os jovens do tráfico circulam fazendo enorme balburdia com suas motos passando pra lá e pra cá em alta velocidade. Primeiro foram os meninos do bairro, crianças que cresceram ali nas redondezas e muitos deles amigos de soltar pipa de meu afilhado. Depois vieram outros, desconhecidos e, agora, é quase impossível sair de casa sem ver nas esquinas jovens com armas vendendo drogas. O ambiente ficou confuso, não só por causa do barulho das motos, mas porque estes jovens passam a noite inteira atirando a esmo. Os carros, à noite, para ultrapassarem certos trechos, têm de piscar os faróis, senha para se identificarem como moradores do bairro. A vida tranquila de década de 1960 cedeu lugar a uma naturalidade em que os jovens do bairro, que não participam do tráfico e cujos pais podem ter convivido com Isaura, não se diferenciam mais dos traficantes e vendedores de drogas. E, quando a polícia chega para achacar os traficantes, alguns fogem pelo quintal das famílias, que de certa forma os protegem, pois são meninos, tão jovens como seus filhos e netos.
Pois foram justamente esses jovens, talvez sob as ordens de um líder um pouco mais velho que assassinaram aqueles seis adolescentes de forma perversa. Todos na Chatuba e nos arredores do bairro de Nilópolis sabem dos detalhes das mortes macabras. Dizem que um dos pais aflito ligou naquele domingo para o celular de seu filho. Um dos assassinos atendeu e disse que este filho não existia mais. A senha para a matança foi o tal funk do celular, que era a música da outra facção.
Os moradores da Chatuba dizem que a paz voltou depois que a polícia e os blindados do exército tomaram as ruas e esquinas do bairro. Reina um silêncio estarrecedor e pode-se ouvir, à noite, o barulho de um mosquito voando. O silêncio já não existia há tanto tempo que quase amedronta. Ninguém imaginava que isso seria possível.
A tristeza desta chacina como de muitas outras está estampada nos rostos de pais e mães desses jovens cujas vidas foram estupidamente interrompidas. Imagino que as mães dos assassinos estejam também de luto. Uma delas inclusive ajudou o filho de 19 anos, que segundo dizem liderou a chacina, a se entregar à polícia depois de ter sido denunciado.
O maior desespero é ver tudo isso acontecer como uma história anunciada. Desde muito minha comadre relata histórias fúnebres do dia-a-dia dessas famílias. Ninguém está a salvo de ter um filho que se torne bandido e mate cruelmente, e nem de ter seu filho, um bom menino, brutalmente assassinado.
Por que não agiram antes? Precisaram de seis jovens mártires para tomar a primeira providência? O silencio voltou à Chatuba. Não é um silêncio de medo, é o silêncio da dor e da desesperança de ver que o Estado não consegue cumprir sua parte. Meninos de 15 a 19 anos que deveriam estar na escola, no ensino médio,e, com certeza trocaram suas canetas e lápis por revólveres e escopetas após muitos anos de reprovações.

 http://g1.globo.com/platb/yvonnemaggie/2012/09/21/uma-chacina-no-rio-de-janeiro/


Nenhum comentário:

Postar um comentário