Marta Caetetu - às 21h 44
Memórias de Infância*
As lembranças que ainda povoam minha mente fazem parte de uma infância vivida com muita brincadeira, roda de histórias e muito estudo, dentre outras tantas coisas. E as histórias que vovó contava é uma das mais presentes.
Eram muito comuns as discussões políticas entre meus avôs, mas o bom mesmo era escutar o que a vovó contava. Nas discussões dois nomes sempre eram falados: Getúlio e Lacerda. Eu não entendia muito bem, imersa em uma doce ingenuidade, por volta dos seis, sete anos de idade, por que aqueles dois homens faziam com que meus avôs, em lados opostos, se exaltassem tanto. Hoje consigo entender um pouquinho do ar extenuado que eles aparentavam ao final de uma discussão dessas.
Meu avô não conversava quase nada com os netos. Por outro lado, a vovó tinha sempre ótimas histórias para contar. E a primeira delas, que eu me lembre, contada repetidas vezes, era a de que meu bisa, tenente do exército nos anos de Getúlio, havia decretado seu casamento com um de seus soldados, no ano de 1931. E ela contava apenas treze anos de idade.
Das histórias de Vargas, algumas permanecem na memória. Ela contava dos desfiles cívicos que havia participado e das vezes que teve de acompanhar o pai ou o marido nos eventos organizados em São Januário. A maneira como ela falava deixava claro que ela na gostava daqueles festejos.
Havia uma senhora, D. Evelinda, vereadora aqui no antigo Distrito Federal, que a vovó contava ser uma de suas amigas e que, politicamente, não alinhava com Lacerda. A vovó dizia que havia muita podridão na política e que muitas obras conseguidas por uns, levavam o nome de outros.
Havia uma palavra que, claramente, representava algo muito ruim para a vovó. Era a palavra DOPS, que, obviamente, não entendia o que era, mas ouvia, atentamente, quando os adultos falavam a respeito de alguém preso pelo DOPS.
D. Evelinda, havia escondido muitas pessoas procuradas durante o período da ditadura de Vargas e minha avó nunca disse se ela também havia colaborado dando abrigo para alguém. Dizia-nos que vivia assustada, sem saber se o pipoqueiro era um homem disfarçado e que era impossível deixar as crianças (meu pai e minhas tias) brincarem na rua sem que ela estivesse por perto.
Um rádio muito antigo, mas que ainda funcionava, era descrito por ela como sendo a relíquia do meu avô, já que ele largava qualquer coisa para prestar atenção aos discursos de Vargas.
A expressão pai dos pobres eu aprendi em casa enquanto minha avó reclamava com o marido que pobre precisava de um governo que mudasse a vida deles.
Meu avô tinha saudade dos tempos de Vargas e sempre dizia que não fora responsabilidade de Getúlio o que tinha acontecido com Lacerda. Enquanto isso, minha avó retrucava, quase aos berros, que Getúlio sabia de tudo. Uma coisa é certa, eu não sabia sobre o que eles falavam.
Meu avô falava muito de Carteira de Trabalho e de que a malandragem não tinha vez na época de Getúlio. Minha avó respondia dizendo que era uma época de incerteza e que ela não concordava com a prisão das pessoas.
Não sei se ela falava de alguém em particular, ou se falava de pessoas que eles conheciam. O que sei é que ela não gostava da época que meu avô tinha tanta saudade.
Muitas discussões e histórias eu nem me lembro mais. Minha irmã mais velha lembra mais um pouco, porém não gosta muito de falar do passado. Em uma das raras vezes em que ela relembrou as histórias que vovó contava, disse que uns vizinhos tiveram a casa invadida e o marido da moça foi levado e nunca mais voltou.
Decididamente, vovó não simpatizava com os militares do passado, muito menos do presente. Quando mais ouvi suas histórias, nos anos de 1970, vivíamos sob a ditadura militar iniciada em 1964 e acredito que, não por acaso, de alguma maneira, a experiência do presente, fazia com que ela contasse aos netos fatos do passado.
Se eu reunisse a família, muitas outras histórias retidas na memória seriam contadas. Minha mãe, minha avó materna e minhas tias talvez lembrem outras tantas.
Embora o relato tenha sido bem curtinho, é representativo das marcas da minha memória que envolve não somente as próprias histórias. Há nas marcas o sentido de afeto que aqui desejei registrar a partir das histórias que vovó contava.
Marta Caetetu
* Trabalho da Disciplina de História da Educação - Curso de Pedagogia/UFF
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