Marta caetettu - à 01h 58
REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS – Número 24 – Abril 2006
Política & Trabalho – Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Universidade Federal da Paraíba, 2006 ISSN 0104-8015
RESENHA: FAVELA: Espaço de indiferenciação?
VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela – Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro. 1ª. Edição Ed. Fund. Getúlio Vargas, 2005. 204p. Formato: 16 x 23 cm [ISBN852250505330]
Antonio Mateus de Carvalho Soares*
Lançado no final do ano de 2005, no Rio de Janeiro, o livro: A invenção da favela, contribui para a atualização de um debate: a questão da favela brasileira. Valladares trata neste livro da evolução da favela carioca e o encontro da “favela real” com a “favela virtual”. Diria que o livro lançado é uma continuidade com ampliado aprofundamento do livro, Passa-se uma casa (1978), que se tornou um estudo clássico sobre habitação e favela no Brasil. Assim quase 30 anos depois, a autora, sem nunca ter se afastado do tema, responde a interpelação: “Afinal de contas, após um século, o que é uma favela?”.
Tendo como pano de fundo a favela carioca, Licia do Prado Valladares, discorre deste a gênese até o momento presente de uma favela-problema, ao analisar as faces e representações deste espaço centenário, a autora explicita a favela como um objeto de pesquisa das ciências sociais, um lugar de exercícios metodológicos e intervenções. Neste esquema discursivo, Valladares, referencia o importante papel exercido pelo escritório de planejamento da SAGMACS2, criado sob o modelo da SAGMA da França,
destaca também a influência metodológica do movimento Économie et Humanisme, representado no Brasil pelo Padre Lebret. Ao decifrar a favela do Rio de Janeiro, ela destaca a influência da política [partidos comunistas] e o papel da religião [católica] na estruturação dos comitês populares democráticos nos espaços favelizados. Após uma importante contribuição historiográfica e de enquadramento sociológico, Valladares chega aos desconcertos de uma favela virtualizada. Desta forma, o objetivo de sua discussão, já
expresso no título de sua obra, é oferecer um material de grande riqueza analítica e cronológica para os estudiosos da temática urbana, especificamente a favela.
Retrocedendo historicamente – sem desconsiderar o lendário retorno dos soldados que lutaram na“Canudos de Euclides da Cunha” – podemos encontrar a sinalização histórica da favela, nos Mocambos do Recife, então descritos por Gilberto Freyre em Sobrados & Mocambos (1936) continuidade da Casa-Grande & Senzala (1933), que em um de seus focos, tratava da caracterização de situações habitacionais destinadas às classes de rendas diferentes. Em uma de suas análises Freyre afirma que a substituição do trabalhador escravo rural, que morava em senzalas, pela emergência de uma força de trabalho proletária, fez surgir os mocambos, palhoças e casebres, ou seja, temos com a abertura das portas das senzalas, o surgimento das favelas. Observamos que neste mesmo período, estávamos iniciando o nosso processo de industrialização, e também a indicação da origem de uma burguesia, que segundo Florestan Fernandes, começa historicamente a se constitui, a partir dos grandes marcos vivenciados pelo Brasil no séc. XIX (entre outros: 1822 perca do Estatuto colonial; 1888 Abolição da Escravidão, e 1889 Proclamação da República). Fenômenos históricos, que não podemos deixar de referenciar, em se tratando de uma compreensão da sociedade brasileira e de sua desigual forma de acesso e apropriação da terra urbana.
A favela como um problema instituído historicamente no urbano, continua sendo uma das mais emblemáticas e abrangentes questões da cidade brasileira. Como forma de apropriação de terrenos alheios, a velha conhecida favela (Rio de Janeiro) ou invasão (Salvador), se constitui como solução de moradia para centenas de famílias empobrecidas que foram privadas do acesso as terras urbanas. Assim a favela pode ser
considerada o lugar da clandestinidade urbana, dos invasores, dos favelados. Um espaço de controle ao mesmo tempo em que um espaço de indiferenciação – fora do espaço jurídico-político e, ao mesmo tempo, enquadrado por ele3, um lugar no qual o direito existe, mas não prescreve, se colocando em jogo uma força de lei sem lei, de desordem que indica ordem, lugar onde o controle existe, mas escapa do poder de um Estado Constitucional.
Para além de um fragmento excluído e ao mesmo integrado na “cidade partida” ou “cidade ilegal”, a favela brasileira – que tem em seu mito de origem a necessidade de moradia dos soldados que lutaram na Guerra de Canudos – é um lugar de práticas culturais, identitárias, e de representações e existências sociais. Vale a pena frisar a óbvia afirmação de que a favela brasileira é produto de uma perversa desigualdade social,
acentuada nas metrópoles brasileiras, onde a riqueza e a pobreza compartilham de uma paradoxal ambivalência de aproximação territorial e distanciamento social.
Em a Invenção da Favela, Valladares, transcende a problematização conceitual do termo, cruzando a sua origem ao seu enquadramento como objeto de estudo nas ciências sociais, e chega a sua forma de existência atual. Ao afirmar que a “favela evidente”, é uma favela “inventada”, a autora nos leva ao encontro de uma constatação que se explica, ao analisarmos o drástico processo de urbanização que se constitui no Brasil,
uma urbanização obediente e constituída ao sabor de uma lógica capitalista que determinava que a única forma dos pobres terem acesso à cidade, seriam através das favelas, lógica histórica e que se exacerba na contemporaneidade.
Diferente de antes, a favela real – explicitada por Valladares – ganha dimensão virtual, é apropriada por um merchandising urbano e, sem perder sua face de precariedades, ganha roupagem nova, sendo transformada em um lugar turístico, tanto em sua escala física, caracterizada por uma arquitetura improvisada, feita por pobres e para pobres; como também na dimensão humana, com personagens característicos (mulatas, negros, afrodescendentes, gente popular de tratos informais) detentores de um certo exotismo para o olhar estrangeiro.
Os morros do Rio de Janeiro, ou o complexo que forma o Subúrbio Ferroviário de Salvador, produtos de uma urbanização que se processa historicamente de forma excludente e concentradora, são territórios, em escalas diferenciadas de concentração de pobreza, alto índice de violência e ausência de um Estado de Direito, sendo inevitável ao se pensar a favela brasileira, não se associarem estas três dimensões. Assim, o estudo de Valladares, de forma implícita nos leva a crer que a favela é uma configuração na qual se instaura o Estado de Exceção4, não sendo, portanto, o caos urbano que precede uma ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão: do direito, da lei, da ordem, que são ligeiramente suspensas e substituídas por um outro quadro normativo ditado pela economia do tráfico de drogas, que detêm suas regras próprias.
Como lugar de exceção a favela pode ser pensada como o habitat do Homo Sacer5, uma figura de análise que se assenta em uma reflexão da vida matável, a vida nua que não merece ser vivida, que se localiza sempre numa zona de indiferenciação, fora do espaço jurídico e ao mesmo tempo enquadrado nele. Ciente do risco que se corre com esta afirmação6, utilizo como exemplo, o documentário que saiu na Rede Globo de Televisão – no Fantástico (19/03/2006), intitulado como: Falcão Meninos do Tráfico7, que mostrou como é o mundo das favelas cariocas, onde a morte se banaliza, e os jovens [falcões] se inserem em um perverso sistema de tráfico de drogas, que se constituem como a única forma de inserção daqueles jovens, no lugar de indiferenciação – favela, onde o viver e o morrer são variáveis pertinentes de um mesmo esquema de exceção.
O livro da socióloga Lícia do Prado Valladares, parte da gênese da favela dando ênfase ao histórico do controle higienista das primeiras décadas do séc. XX; aponta a favela como um objeto de pesquisa sociológica, espaço de comprovações empíricas, chegando às simulações de uma favela virtual. A autora em seu livro provoca uma reflexão que vai além do exposto no próprio escrito, supondo que a pergunta originária, que é respondida por Valladares, “Afinal de contas, após um século, o que é uma favela?”, possa ser re-elaborada em uma outra pergunta: “A favela, após um século de constituição, pode ter se transformado em um espaço de indiferenciação?”.
1 Mestre pela USP com créditos nos Programas de Pós-Graduação dos Departamentos de Sociologia da UFSCar e da
UNICAMP; Bolsista FAPESP; Sociólogo UFBA; Urbanista UNEB; Especialista em Gestão Pública Municipal –
UNEB/FGV; Membro do Grupo de Pesquisa -Cultura, cidade e democracia: representações e movimentos sociais,
coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Geraldo D’Andréa (Gey) Espinheira, no CRH/UFBA. E-mail: (amsoares@sc.usp.br)
2 Sociedade de Análise Geográfica e Mecanográfica Aplicada a Complexos Sociais, criado em 1947.
3 No sentido do filosófo italiano Giorgio Agambem. In: Cf. AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a
vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
4 Não é nosso objetivo aprofundar as problematizações sobre o Estado de Exceção, contudo podemos dizer que segundo
(AGAMBEM, 2003) a exceção é uma espécie de exclusão [...] o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que
é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação
com aquela na forma de suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. Neste sentido, a
exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída. [...] Chamemos
relação de exceção a esta forma extrema da relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão.
5 Cf. AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
6 Dada a complexidade do uso do conceito Estado de Exceção, assim como da figura terminológica Homo Sacer.
7 Documentário reproduzido pelo Rapper MV Bill e Celso Athayde, mostra como é a vida dos chamados falcões, jovens
geralmente menores de idade que vigiam a favela e que vendem drogas.
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