Marta Caetetu - às 22h 15
A
Troça, a traça e o forrobodó: folclore e cultura popular na escola
(Rio de Janeiro:
DP&A, Ed. 2000, PP.61-76)
Começo de tarde, sala de
professores de uma escola municipal na periferia do Rio de Janeiro. A orientadora, com óculos largos de grau e
pestanas exageradas, traz à baila o assunto da reunião: as comemorações do dia
do folclore, no dia 27 de agosto.
-Eu falei dessas
goteiras! Interrompe uma das professoras
reclamando, falando alto. Agora está aí:
os cartazes dos trajes típicos, das comidas típicas regionais que eu fiz, com
todo o capricho quando entrei para esta escola e l[á se vão oito anos – suspira
– estão acabados, cheios de manchas d’água, faltando pedaço! Como vai ser esse
ano?
-Mas não dá para aproveitar –
diz uma colega. Quem sabe a gente cola
nas beiradas uma cocada, um acarajé, um babado de prato de doce...
-E não é só isso não! Vocês viram os chapéus do saci? Estão todos furados de traça! Quem lembrou de pôr naftalina naquelas
caixas? Tudo perdido! Nessas condições como é que se pode ter
folclore nesta escola?
Outra professora intervém, examinando
uma pasta com papéis: - Seria melhor
então largar das fantasias esse ano e só contar as lendas, aquelas que já estão
aqui, mimeografadas...Bota para colorir a mãe d’água, o boto cor-de-rosa. Usa essas histórias para fixar conteúdos...
-Ah não! Temos que armar a nossa festa em agosto,
rebate a diretora. Precisamos consertar
a caixa d’água e o muro também precisa de reparos. É tempo de levantar dindim, fazer algum dinheiro! A nossa quermesse, com as dancinhas, as
apresentações dos alunos, os salgados e doces, a bandeja com chás medicinais
tem de acontecer! Aliás, já comprei no
supermercado várias caixinhas de cidreira, boldo, carqueja. É mais simples do que ir atrás de pé de
planta. Já está pronto. Mas voltando à festa, ela é também uma
oportunidade de abrir a escola para os pais, para a comunidade e levar um
trocado – pisca um olho.
Do canto da mesa, outra
professora pede a palavra, mudando o tom da conversa: - Estou aqui pensando... Será
que trabalhar o folclore e a cultura popular brasileira na Educação é, com dia
marcado, pintar menino de saci, vender bolo de milho e espalhar nas salas
desenhos do bumba-meu boi?
Essa encenação de sala de aula, criada a partir da
experiência dos meus alunos-professores, traz pela brincadeira e pelo caricato,
flagrantes comuns do debate sobre o folclore nas escolas. Seguindo o calendário das festas, atiçam-se,
no mês de agosto, eventos muitas vezes os mesmos, ano após ano, que pretendem
evocar as “nossas tradições” facilitadas, as “antiguidades populares”
ilustradas nas histórias passadas como bastões da moral e do civismo, símbolos
de brasilidade. Nessas comemorações,
politicamente puídas, ou no uso do Folclore como mero recurso didático, foi-se
perdendo a ideia de problematizá-lo como campo de estudos na Educação, de
explorá-lo nas pesquisas cotidianas voltadas para a cultura plural e
conflitante das ruas,
das roças e das florestas. No
jogo figurado de parlendas pobres, correntes nas salas de aula, tira-se de
foco, talvez, a dinâmica dos processos culturais que pode enlaçar o funk do
bairro, a quadrilha do terreiro, as pajelanças, a arte dos trançados, das
linhas e das tintas; os novos versos de cordel, as frases de caminhão, os
cantos de trabalho e de devoção.
Esquecem-se os saberes diferentes sobre plantas, bichos, areias
coloridas e estrelas; histórias contadas, cirandas de príncipes, santos e
assombrações; cartografia da fonte e da miséria.
Perdem interesse o trabalho e o sentido do trabalho
nas cidades, no mar e nas enxadas; as regras de reciprocidade, a falta da
terra, as tramas da política, da família, do compadrio, os modos de morar, os
segredos dos temperos, as folganças, os ritos de passagem – um correr sem fim de
temas inter-relacionados, permanentemente re-significados, matéria para
observar, pensar, sentir, re-inventar nas escolas.
Nessas construções culturais, o popular e o erudito
se imbricam, abrindo circularidades, formas de apropriação recíprocas. Essas oposições complementares fazem-se por
dentro de um espaço de luta simbólica, de relações de força que buscam afirmar
os conhecimentos legítimos.
O trabalho das instituições
educativas pode relativizar o projeto de homogeneização das competências
linguísticas, culturais, abrindo-se para o reconhecimento
das diferenças. Ao longo do ano
letivo, dos tempos de Carnaval e de folia às vésperas do Natal, são múltiplas
as possibilidades de pesquisa e documentação nos livros e na “comunidade”,
desdobrando das magras festas de agosto uma permanente investigação sobre
contextos culturais específicos brasileiros e identidade nacional, repensada na
fricção das fronteiras do Estado-Nação, diante das novas perspectivas de
mundialização da cultura.